Espetáculo ‘O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu’ emociona e inspira o público

01/11/2018 20:00

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

“Estou sem palavras.” “Maravilhoso!” “Muito forte! Muito linda!” “Sensacional!” “Nossa, fiquei muito emocionada!” “Inspirador!” “Revigorante!” Foi com essas palavras, e nesse estado de êxtase e encantamento, que o público descreveu o que sentia ao final do espetáculo “O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”, com a atriz trans Renata Carvalho. A peça foi apresentada na última terça-feira, 30 de outubro, dentro da programação da terceira edição da Semana de Arte Experimenta, promovida pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Após cerca de uma hora de espetáculo, aproximadamente 600 pessoas presentes na plateia aplaudiram de pé durante vários minutos. Os aplausos só cessaram quando a própria atriz os interrompeu para proferir um breve discurso sobre o monólogo.

Renata solicitou que todas as pessoas trans do auditório se identificassem e subissem ao palco. Depois, ao lado dessas 16 pessoas, dirigiu-se a elas expressando sua satisfação por estar dentro de uma universidade, “um lugar elitista, branco e cisnormativo”: “É uma resistência vocês estarem aqui. Muito obrigada por existirem. Ainda mais agora, que nossos corpos serão tão atacados. Vamos combinar de não morrer. Estaremos vivas até o final. Estar viva é um ato político.” Voltando-se então à plateia, continuou: “Esse espetáculo é atacado desde sua estreia, em 2016. Jesus é à imagem e semelhança de todo mundo. Menos de nós, pessoas trans. É ‘inapropriado’, é ‘sexualizado’. Isso se deve à construção social do que vocês, cisgêneros, imaginam ser uma travesti. As pessoas dizem que não são preconceituosas. Mas quando falamos ‘Jesus, travesti’, as máscaras caem. Isso é fruto da criminalização da nossa identidade, dessa construção social.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

A atriz também aproveitou o momento para divulgar a campanha Movimento Nacional de Artistas Trans (Monart), solicitando aos artistas cisgêneros que deixem de representar artistas trans durante pelo menos 30 anos, tendo em vista a importância de incluir os corpos transgêneros nos locais de poder. “Assim esse país não vai ser mais o país que mais mata LGBT e pessoas trans no mundo. A nossa segunda causa de morte não será mais o suicídio, pois nos sentiremos representadas. Representatividade é ocupar os espaços de poder. E a arte também é um espaço de poder. Quando nossos corpos estiverem nesses espaços, vocês serão obrigados a conviver com eles. Com a convivência, nós desmistificamos, naturalizamos e humanizamos nossos corpos. Quando um grupo está presente, este grupo ganha força. Ainda estamos lutando para sermos consideradas humanas, por isso a representatividade é importante sim.”

O espetáculo

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

A personagem “Jesus” entrou pela parte de trás do auditório, com música sacra ao fundo, trajando um vestido tubinho preto, sobreposto por um terno branco e saltos altos. Segurava, em uma mão, uma maleta também branca; na outra, uma latinha do refrigerante “Jesus”. Caminhou em direção ao palco dizendo: “Vocês vão pensar que deveríamos nos encontrar em uma igreja. Mas deixa eu te contar: na igreja aqui no final da rua, não me deixam entrar. Sexo demais. Aparentemente. Perigoso demais.” Referia-se ao preconceito que as pessoas transsexuais e LGBT sofrem, ao serem excluídas de igrejas e outros espaços religiosos.

Já no palco, prosseguiu enaltecendo o feminino e o papel da mulher, pouco representada em escrituras antigas e sagradas: “E sabemos que era ‘ela’, pois as histórias contam que deveríamos procurar por um homem carregando um jarro de água. Homens nunca fizeram isso. Nunca carregaram água. Esse sempre foi o trabalho de uma mulher. Eu não entendo porque, nos dias de hoje, os homens se orgulham de carregarem armas e facas, mas têm vergonha de carregarem a fonte da vida. Mas ela não tinha vergonha disso. A alma caridosa que nos guiou. Ela era bela. Essa pessoa nascida homem em veste de mulher. Ela era uma de nós. E foi assim que tudo começou. Um grupo de iguais. Um encontro de amigas com o mesmo desejo de mudar o mundo! Portanto, não imaginem que eram 12 machos cisgêneros, héteros. E também não éramos apenas 12.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

O texto faz uma releitura de diversas passagens da Bíblia, com um Jesus vivendo não apenas na contemporaneidade, mas também em um corpo transsexual. Há críticas à uma sociedade discriminatória e às religiões que excluem o diferente, o que está “fora dos padrões”. Mas há também “sermões” pregando a empatia, a fraternidade, a generosidade, o amor. A peça se propõe a fazer ver, perceber, sentir e respeitar o outro, a humanizá-lo. No caso específico, o outro é trans. Mas a mensagem se estende a todos os demais grupos sociais desvalorizados e depreciados — como mulheres, negros, indígenas, pobres etc. Tudo isso decorre em tom leve e divertido. Mesmo a dureza é exposta de forma serena e delicada. A atriz consegue, assim, com uma atuação desenvolta e elegante, fazer rir a plateia. Os muitos momentos de riso coletivo foram certamente fundamentais para cativar o público e criar uma energia de alegria e amorosidade ao final do espetáculo.

Essa foi a segunda vez em que o monólogo foi encenado em Florianópolis e na UFSC. Em 2017 Renata se apresentou no Templo Ecumênico, dentro da programação do Congresso Internacional Fazendo Gênero. Em ambas as ocasiões, não foi feita ampla divulgação. A ideia era garantir que o espetáculo ocorresse e evitasse que se repetissem os episódios ocorridos em outras cidades brasileiras. A peça foi censurada no Rio de Janeiro (RJ), em sua estreia, e depois em Guaranhus (PE). Em alguns lugares a apresentação se efetivou apenas com ordem judicial. Essas tentativas de proibir a realização do espetáculo partiram de grupos religiosos que não aprovavam a ideia de ver Jesus representado como um transsexual — apesar de sequer terem assistido ao espetáculo.

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

O público

A apresentação ocorreu dois dias após o segundo turno das eleições presidenciais e o contexto político permeou a noite. Momentos antes do início e logo após o final da peça o público se manifestou gritando “Ele não!”. A estudante de Artes Cênicas Alexandra disse que o espetáculo lhe proporcionou uma sensação de conforto após sua decepção com o resultado das urnas: “Foi um toque maravilhoso após as eleições. É um discurso que é fundamental, mesmo na universidade, onde parece que todos são esclarecidos quanto às pautas identitárias. Eu tenho um filho LGBT e, para mim, foi um acalento no coração. Foi um afago, foi um carinho nesse momento.”

Diversos outros estudantes de Artes Cênicas também assistiram a peça e, inclusive, a própria coordenadora do curso da UFSC, a professora Débora Zamarioli, que igualmente descreveu o espetáculo como um “momento de acolhimento e benção”: “Não é uma peça simplesmente. É uma celebração da humanidade, que é o que deveria ser a nossa espiritualidade e nossa irmandade. Há lucidez no espetáculo. Ele proporciona encontros amorosos e sem julgamentos. Um verdadeiro respiro nesse momento. Uma saída do espaço virtual que aterroriza nossas solidões. E quando nos encontramos com tantas pessoas que querem estar juntas para se proteger e celebrar, é um benção. Sobretudo nesse momento.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

A secretária de Ações Afirmativas e Diversidades (SAAD/UFSC), Francis Tourinho, também descreveu a peça como “acolhedora”: “Em um momento de ansiedade e medo que se instaura, tivemos um espetáculo carinhoso e acolhedor, que mostra que somos todos iguais, que Jesus está dentro de todos nós, como símbolo de humanidade. Independentemente de nossa religião, raça, etnia, nacionalidade, somos todos iguais. E foi isso que a Renata nos mostrou: o quão grande é o nosso direito de amar o outro e de nos amar.”

A peça também sensibilizou o público por outras questões. Para a doutoranda em Estudos da tradução, a transex Feibriss, a peça reforça a importância de se ter pessoas transex, LGBT, negras etc nos espaços de poder, corroborando o discurso da atriz no encerramento do espetáculo. “É revigorante se ver, se sentir representada. Não só para mim, mas para todo mundo, pois enquanto não ocuparmos esses espaços, nossas histórias serão contadas por outras pessoas. E já passou da hora de nós contarmos nossa própria história.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

Para outra estudante, do curso de Libras da UFSC, a questão da religião foi o que mais a tocou: “A peça é muito forte e muito linda. Sou católica, mas os preconceitos utilizados em nome da religião traz questionamentos. Ver uma pessoa excluída da religião por ser quem ela é, passando uma mensagem linda de amar o próximo de uma forma tão simples e verdadeira é maravilhoso. O espetáculo traz uma mensagem de amor. É uma pena que as pessoas que mais precisam assistir não estavam aqui. Seria ótimo se essas pessoas estivessem abertas, pois poderiam mudar. A peça me ajudou a sair daqui diferente.”

Daniela Caniçali/Jornalista da Agecom/UFSC